“Vestimos o que desejamos, o que tememos, o que ansiamos”

A psicanalista Manuela Xavier reflete sobre o primeiro dia de SPFW, o tema desta edição do evento, e o desfile de João Pimenta

Nesse ano, a 55ª edição do São Paulo Fashion Week apresenta o tema “Origens/Ressignificar”, assim, dessa forma: um substantivo feminino escrito no plural para demarcar esse ponto zero, o início, o ponto de partida; um muro simbólico e linguístico; seguido de um verbo que convida a uma ação: atribuir um outro significado que conduza a um novo sentido. É o velho e o novo; o coletivo e o individual; o original e o autoral, numa sincronia bonita e convidativa contando uma história. E que história é essa?

No dicionário, a palavra moda contempla sentidos coletivos e também individuais: é a tradução de um tempo e de uma cultura, aglutinando portanto modos de ser e existir de um coletivo; e também um modo radicalmente próprio de se fazer alguma coisa que inspira e passa a ser perseguido como ideal. Em tempos de fast fashion que reproduzem tendências que duram o tempo de um story, uma semana de moda apresentar desfiles que contam histórias de décadas de construção é revolucionário. Em tempos de padronização do belo, uma temporada de moda afirmar que a origem é múltipla e portanto os caminhos podem ser também infinitos, é uma aposta na beleza de ser quem podemos ser.

Nesses tempos que nos assombram no que Freud chamou de “o narcisismo das pequenas diferenças”, em que nos encerramos em pequenos grupos rivalizando com qualquer mínimo sinal de alteridade e diferença no outro naquilo que pode não se assemelhar a nós; uma semana de moda que convida a ressignificar é a possibilidade da formação de laços fortes ali onde havia solidão. É preciso enxergar a moda pelas lentes da história e entendê-la como a tradução mais concreta do inconsciente de uma época.

Vestimos o que desejamos, o que tememos, o que ansiamos; e por isso mesmo o que vestimos importa porque traduz os nossos desejos, os nossos temores, os nossos anseios. Mas, mais ainda, localiza em quem veste a plataforma de pleitear seus desejos, de aplacar seus temores, de comunicar seus anseios. E assim, moda é também empoderamento. Em tempos em que tudo se dá ao toque de um clique, temos tempo para avaliar o que desejamos? Temos fugido dos nossos medos ou temos sido convidadas a frequentar as brechas das rachaduras da armadura que construímos para sobreviver? Estamos ansiando ou ansiosos? Temos sido protagonistas em nossas narrativas ou temos seguido o script desenhado para nós? Hesitou em responder? Pergunto de outra forma: você tem vivido uma vida que faz sentido para você ou tem vivido a vida que sonharam para você? As suas escolhas, desde o momento que você escolhe uma roupa no armário até o “sim” que você diz quando quer dizer “não”; são escolhas que priorizam as suas particularidades, o seu tempo, o seu jeito; ou são escolhas pensadas em agradar ao outro? Numa busca para ser aceita e construir uma personalidade própria, você foi eclipsada pelas máscaras que precisou vestir? Em que momento você se perdeu de você mesma enquanto vive e conta a sua história?

Geralmente, essas são questões que permeiam o universo e a subjetividade femininas; e nesta semana, vimos o desfile de João Pimenta abrir a temporada de moda do São Paulo Fashion Week trazendo uma outra perspectiva para isso que nós mulheres reivindicamos: uma existência livre, longe da performance. Entretanto, na passarela vemos homens: os corpos que veiculam narrativas hegemônicas que também os constrangem, desfilam em João Pimenta com a estrutura clássica de alfaiataria, assinatura da marca, e com outros recortes, moldes e modelos. Saias – curtas ou rodadas; franjas, renda, transparência, tecidos brocados.Tudo isso acontece no centro da cidade, no Theatro Municipal de São Paulo e abre uma temporada de moda que se apresenta com o tema “Origens/Ressignificar”. É preciso ressignificar a masculinidade como conhecemos, essa performance rígida, cafona e intransigente e pensar uma forma mais livre, leve, humana e poética de existir; e foi isso que assistimos em cima de um palco de teatro. Com João Pimenta, a masculinidade não é farsa nem figurino, e sim uma expressão de um modo muito singular de se estruturar na fluidez; e isso nos concerne a todos porque é um convite a frequentarmos outras performances diferentes do roteiro proposto pelo status quo e ousar sermos o que somos, encontrar a nossa originalidade.

Quem seríamos se pudéssemos romper as normas e não sermos coadjuvantes de nossas existências? Se pudéssemos rasgar os roteiros que usamos para seguir o automático da vida? Se pudéssemos ser não apenas protagonistas, mas autores e autoras da nossa própria vida? Nas costuras de João Pimenta encontramos um caminho para uma outra construção que nos represente sem nos eclipsar, que nos potencialize sem nos fantasiar, que nos proteja sem nos enrijecer. No teatro das performances, ganha o jogo quem escreve roteiros inéditos e originais.

É urgente ressignificar esse ponto em que nos perdemos das nossas origens, encontrar o fio que se soltou da tessitura das nossas pluralidades, a potência das nossas assimetrias, as belezas dos corpos diversos, o inédito da nossa assinatura. Na passarela do São Paulo Fashion Week esse ano veremos as mãos que costuram um tempo, os corpos que espelham uma época, as vozes que amplificam a mensagem que verdadeiramente importa: moda é comunicação, produção de narrativas plurais, potentes e relevantes – e também dissidentes. É convite a expressar e celebrar uma identidade própria que pode ser contada, costurada, construída, vestida, admirada, elaborada.

Nesse São Paulo Fashion Week te convido a uma experiência especial: olhar com outras lentes o mundo da moda e encontrar ali respostas para as perguntas que você nem sabia que tinha – ou mesmo poder construir, de forma autoral, outras perguntas para as respostas que já não servem mais.

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